Você iria ao Maracanã ver um clássico por R$ 2,60 ?

Maraca

[sugestão de música para a leitura: Virada, Beth Carvalho]

A pergunta acima pode parecer surreal nos dias de hoje, mas em relação ao salário mínimo brasileiro, esse era o preço cobrado pelo ingresso da arquibancada do Maracanã em 1959, logo após o Brasil ganhar sua primeira Copa do Mundo. A questão é pertinente em tempos de estádios (ou melhor, Arenas) cheirando a tinta fresca no Brasil e com boa parcela de desocupação (vide Maracanã, Mineirão, Mané Garrincha), sobretudo nos valorizados setores próximos ao meio-campo.

A comparação com o preço de outrora fica ainda mais brutal se fizermos um comparativo semelhante em relação ao preço da Geral, mítico setor popular dos estádios no qual se assistia as partidas em pé, no nível do campo (setor extinto por determinação da FIFA): o bilhete sairia por módicos R$ 0,60 – isso  mesmo, 60 centavos de real!. Isso para não entrar no mérito dos ingressos destinados aos militares, ainda mais baratos (isso daria uma tese!).

Diário de Notícias - 25/02/1961 p.8
Diário de Notícias – 25/02/1961 p.8

Embora embasado em dados reais dos preços dos bilhetes e dos valores do salário mínimo em fins da década de 1950, tais números não têm efeitos científicos. Dizemos isso pois os rebuscados cálculos econômicos devem inserir nesta comparação uma infinidade de ‘logaritmos neperianos de base pi’ e outras variáveis mais escabrosas que as cifras gastas nas recentes reformas do ‘Maior do Mundo’; tantos números e incógnitas nos desautorizariam a pensar a questão de tal forma. Entretanto, refletindo de um modo mais pragmático, por que não pensar o preço do ingresso de forma mais simples, mais popular? Afinal, o futebol só é tão popular e congregador (fenômeno social total, segundo os acadêmicos) justamente pela simplicidade de suas regras e por ser facilmente reproduzido/jogado e acompanhado por quem quer que seja, em quaisquer condições que se apresentem.

O que adianta eu trabalhar demais, se o que eu ganho é pouco

No último domingo O Estado de S. Paulo trouxe uma reportagem sobre um tema que há tempos os grupos mobilizados em torno do Futebol e do tão afamado “legado da Copa” vêm discutindo: os preços dos ingressos e o processo de elitização do futebol brasileiro. Na reportagem do OESP, tal e qual nestes grupos, o modelo alemão é contraposto ao inglês e espanhol (estes últimos sendo os modelos seguidos pelo Brasil); enquanto os germânicos, de modo geral, destinam a grande parte dos ingressos para setores populares, atingindo médias altíssimas de ocupação dos estádios e proporcionando um verdadeiro espetáculo por meio de sua torcida – o Borussia Dortmund, vice-campeão europeu, tem ingressos a € 5,50, ou seja, R$ 1,85 segundo os mesmo parâmetros de comparação com o salário mínimo* – o estádios espanhóis e ingleses são infinitamente mais caros, com torcidas menos inflamadas (torcedor-cliente?) e crescentes movimentos contrários à gentrificação do futebol.

E quem tem muito tá querendo mais, e quem não tem tá no sufoco

A absurda, vergonhosa e autoritária concessão do Maracanã ao grupo capitaneado pelo milionário ex-bilionário Eike Batista (importante conhecer a história de Eliezer Batista, pai de Eike e ex-ministro de Minas e Energia, metido com os militares e acusado de surrupiar o conhecimento acumulado de décadas de pesquisa sobre o subsolo brasileiro) faz qualquer ação dos Black Blocs parecer brincadeira de criança (chegarão os Black Blocs às catracas das Arenas?).

Vamos lá rapaziada, tá na hora da virada, vamos dar o troco

Com ingressos a R$ 80, 100, 120 em jogos ordinários do Campeonato Brasileiro, gestores alinhados a um pensamento eugenista, cartolas e autoridades políticas envolvidas numa verdadeira vandalização do patrimônio nacional (material como o Maraca e imaterial como o futebol) os contragolpes já começam a ocorrer em larga escala a ponto de nos questionarmos se ainda há tempo para atenuar uma questão tão pungente. A turma que agora veio cobrar – torcedores, manifestantes, despejados, alijados do processo – não vai se contentar com pequenas concessões; o empate não parece ser mais um bom resultado e já está na hora da virada.

*A Alemanha não dispõe de uma legislação que estabeleça um salário mínimo geral; no setor da construção civil, rendimentos mensais da ordem de € 2000 são comuns.

Estádios, arenas e os torcedores

A presente discussão foi disparada partir da última quarta-feira, quanto o São Paulo FC venceu a Universidad do Chile por 5×0 no Estádio do Pacaembu (o jogo não ocorreu no Morumbi em razão de sua locação para um show musical). Ajudados pelo gol de Jadson logo no início do confronto, os torcedores tricolores cantaram e apoiaram o time na maior parte do jogo; foram tão vibrantes nas arquibancadas quanto o time em campo. Após o apito final, o jovem Lucas foi até o alambrado e cumprimentou os torcedores.

crédito: Lancenet

Há milhares de anos a humanidade sabe da importância que a arquitetura tem no processo de conduzir os homens a manterem certo comportamento. Dos anfiteatros greco-romanos da antiguidade, aos modelos modernos do panoptismo – sem esquecer dos amedrontadores e apequenadores estilos das catedrais, sobretudo as góticas e românicas – a conduta humana diante das edificações sempre foi projetada em relação aos valores de interação, comportamento, submissão etc. Esta complexa relação de poder assume diversas facetas; muitas vezes o aspecto autoritário é o que mais se sobressai.

No futebol – e no Brasil – essa questão assumiu proporções ainda maiores. Isso por que estamos falando de um esporte que traz em sua forma uma boa pitada de subversão: embora um pouco atacada, a tese da atividade atlética destinada à elite que se proletariza com o tempo tem uma boa dose de validade. Neste processo, os estádios, como palcos esportivos e cívicos, à moda do processo civilizador dos esportes modernos, foram projetados de forma a acolher e disciplinar a grande turba que acorria às suas praças esportivas, disseminando uma série de valores idealizados em relação a um projeto nacional. No Brasil isso ocorreu tanto nos grandes estádios mais antigos (São Januário e Pacaembu), naqueles construídos nos anos 50 e 60 (Maracanã, Morumbi, Olímpico, Mineirão) e muitos outros construídos ou ampliados durante a Ditadura Militar.

Mas, também é importante pensar à moda de Jardel, e atinar que a teoria, na prática é outra. A teoria pode ditar o ritmo, a forma, as condições, mas funciona bem somente até a página 2. O fator humano, com todas as suas implicações históricas e sociais, sempre faz pender a balança, ora pra um lado, ora pra outro. Para se tomar um exemplo histórico representativo, há um entendimento já bem assentado de que as atuais torcidas organizadas (estas, tão mal vistas aos olhos da sociedade) se originaram, em grande medida, das antigas torcidas uniformizadas carnavalizadas (ex.: Charanga do Jaime), cuja principal função era ditar boas normas do torcer por meio de competições de comemorações, de festividades, de coreografia, música etc. E tudo isso ocorria sob o patrocínio da polícia, dos próprios clubes, dos jornais de esporte e empresas.

Em vista disso, é importante pensar que ao longo das trajetórias dos clubes brasileiros, suas respectivas torcidas e estádios (sejam eles próprios ou mesmo os públicos, usados de modo compartilhado) moldaram suas próprias identidades. Seus modos de torcer delinearam-se (e continuam a se transformar) ao longo do tempo e nisso, evidentemente, teve um grande peso o caldo cultural trazido por sua torcida. Vinculada a algum segmento social (elite branca ou proletários mestiços), a esta ou aquela associação (indústria ou comércio), a bairros ou cidades, sob todas estas variáveis pesou também de modo determinante a arquitetura destes palcos esportivos nas manifestações de seus torcedores. Internamente podemos elencar a proximidade ou “lonjura” do campo, a localização e capacidade dos setores com ingressos a preços populares (lembremos das antigas gerais), a disposição dos assentos, inclinação dos degraus, condições de visibilidade, acústica, conforto, dentre muitos outros. Externamente, outros tantos fatores também tem sua implicação (localização geográfica, abastecimento de transporte público e estacionamento, bilheteria, alimentação e por aí vai). Um exemplo atualíssimo e bem ilustrativo é o Estádio do Engenhão. A comparação entre o comportamento que tinha a torcida do Flamengo no Maracanã e que tem agora no Estádio que foi construído para o Pan (2011) é das coisas que entristece qualquer admirador do futebol.

La Bombonera: temido estádio do Boca

Assim, a questão impertinente que se impõe em tempos de remodelação do público torcedor é a seguinte: dentre os 12 estádios brasileiros que abrigarão jogos da Copa de 2014 quais deles foram pensados e projetados em consideração às identidades clubísticas e torcedoras que ocuparão seus espaços pelas próximas décadas (vamos desconsiderar que existem estádios sendo construídos onde não há clubes), e não somente durante alguns dias de um único mês? E não se trata aqui de por em xeque a ocorrência ou não da Copa do Mundo, ou as reformas/construções de estádios. O tal “padrão FIFA”, que impõe a espécie de grama a ser plantada no campo de jogo, os tipos de assentos, a forma e quantidade de camarotes e até o que é permitido/proibido no entorno dos estádios, além de determinar uma série de remoções de comunidades pobres e remodelações urbanas, passa como um trator também pela história dos clubes e de seus torcedores. Ao segmento mais popular destes amantes do futebol, além de sua “cota social” dentro dos estádios, uma vez mais caberá o papel de reinventar suas formas de inserção e interação, ou, a exemplo do que já vem ocorrendo nas construções das novas Arenas, serão removidos para longe dos estádios de seus clubes de coração.