Classe “C”, de Corínthians.

Depois do buzinaço e da madrugada de rojões e gritos de “Vai Corínthians”, uma rápida olhada nas mídias e nas estantes nos propõe algumas reflexões acerca da conquista corintiana. O primeiro aspecto, inegavelmente, é a dimensão histórica da competição, que dá a chance de um embate/ajuste mundial entre a América e a Europa (sem esquecer que o torneio leva o nome de “Libertadores da América”; que, com todas as reapropriações e ressignificações, evoca o legado de Simón Bolívar, San Martín, José Martí, Francisco de Miranda). O segundo, tal qual um pesquisador/ensaísta da história do futebol, são os simbolismos e metáforas (sempre forjadas) que tal conquista carrega. Terceiro: quase como um resumo, são algumas ideias de história, propriamente, que surgem deste título (tão festejado como uma “conquista histórica”, “campanha histórica” etc).

I) Se aqui no Brasil não temos o nosso libertador nacional (não valeria a pena lembrar Bonifácio ou Pedro I), talvez seja melhor mesmo procurar o elo entre futebol e personagens políticos que para nós adquiriram significados importantes e que estão relacionados a esta conquista. De Getúlio a Lula (talvez somente excluindo a seleção de 70, no ponto alto do militarismo) há uma ponte que atravessa o futebol e conduz do “populismo” ao “popular”.
Getúlio sacou a potência da penetração social que o futebol tinha, sobretudo numa época de afirmação da urbanidade e de demanda por pertencimento aos campos políticos até então vinculados às elites agrárias. Esta incorporação, à maneira do processo civilizatório, encontrou no futebol e em seus estádios uma praça cívica detentora de um simbolismo extremamente potente. Getúlio discursou aos operários, em São Januário (que então acomodava mais de 40 mil em suas bancadas), um sem-número de vezes, principalmente nos 1ºs de maio (sacanamente transformado de “dia do trabalhador” em “dia do trabalho” pelo conservadorismo midiático) e inaugurou o Pacaembu (que já abrigou mais de 70 mil), pensado como palco multifuncional (pergunte ao Maluf sobre a Concha Acústica).
Mais recentemente foi Lula que voltou à carga com o elo “Presidente” e “Futebol”. Dizem que o ex-presidente já tinha um envolvimento com esporte desde os tempos de sindicato (organizando torneios e confraternizações), e que seu time de coração era o Vasco, tendo “virado” corinthiano por uma questão de classe. Pois foi Lula quem esteve no centro de uma bem alinhavada trama que envolveu o PT (Lula, propriamente, mas sobretudo Andrés Sanches), Globo (o Corínthians e o mais alto contrato por direitos de transmissão), CBF (Ricardo Teixeira), FIFA (Copa 2014 no Brasil) dentre outros (patrocinadores, empreiteiras, cervejarias, outros grupos políticos – o Itaquerão, à boca pequena, foi chamado de “Lulão”). E isso, ressalte-se, dentro das margens de manobra de bastidores autorizadas, e sem as quais nenhum “time grande” conquistaria seu lugar ao sol. O envolvimento Lula-Futebol parece mais sofisticado que o de GV e envolve outros poderes que se constituíram e se consolidaram no decorrer destes 60, 70 anos. O futebol se midiatizou, publicizou, globalizou e atingiu proporções ainda incalculáveis ao nosso tempo (os brasileiros campeões do Mundo em 1958 nunca poderiam imaginar a dimensão que aquele conquista teve ao longo do tempo) e que serão certamente reapropriadas e resignificadas.
Resumo da partida: da mesma forma que a historiografia reviu o conceito de “populismo”, à luz de uma série de disputas/conquistas/concessões aos trabalhadores (sem que isso signifique cultuar o mito do “pai dos pobres” e tampouco vitimizar a “domesticação proletariada”), também é necessário um certo distanciamento desta fundamental afirmação identitária corinthiana (“louco”, “favelado”, “o time do povo”, “república popular”) que, com todas reapropriações e ressignificações históricas, acaba produzindo efeitos e forjando concepções em relação às quais não é mais possível passar batido. (Apenas para que se tenha uma dimensão acerca disso, vale uma rápida consulta à tabela de renda média dos torcedores).

II) Se a conquista da américa pode ser pensada como metáfora, é o caso de forçar um pouco a barra e viajar em alguns paralelos. Há 20 anos a Libertadores não tinha no Brasil a importância que agora tem (sobretudo para os corintianos), e essa valorização, dentre outros fatores, deveu-se às conquistas dos rivais Santos, São Paulo e Palmeiras. Também às gozações, com uma boa parte delas relacionada à preconceitos de classe (o bilhete de metrô como passaporte, o “nunca serão” internacionais, o “clube da periferia”), alimentaram a sanha corintiana por uma conquista continental e a simbólica ascensão ao grupo desta “elite” do futebol.
Com efeito, se existem marcas neste título corinthiano certamente são luta, dedicação, esforço e trabalho coletivo. E a viabilidade do título, é importante frisar, não significou renunciar a estes valores já associados a estas “identidades” corinthianas. O título não foi conquistado com Ronaldo, Roberto Carlos ou qualquer outro cobrão; o título veio com um time “sem estrelas individuais”. Ou seja, ascensão de um grupo de jogadores, com históricos diferentes de lutas, mas em certa medida nivelados num mesmo padrão.
Talvez fosse o caso de reconhecer rapidamente a trajetória de alguns personagens. Emerson, “Sheik das Américas”, talvez seja o mais simbólico dos conquistadores corintianos. Ainda jovem falsificou sua documentação para emplacar como jogador, caminhou cambaleante entre a ordem e a ilegalidade, foi escorraçado do aristocrático Fluminense e do rico Qatar, literalmente “deu até mordida” pra conquistar o título. Alessandro e Chicão, remanescentes daquele elenco montado para disputar a série B, completaram o ciclo: vieram de baixo, cresceram junto com o time e foram os capitães da conquista. Cássio e Romarinho, ilustres desconhecidos há poucos dias atrás, agora são alçados à condição de heróis: “a sorte pode sorrir pra qualquer um no próxima esquina”. Paulinho e Ralf (conforme ouvi dia desses numa mesa de bar – não sem algum preconceito) têm a cor e a cara da periferia brasileira: raça e luta de quem vem de baixo (Barueri e Bragantino) em busca de seu lugar ao sol.

Foto: Max Rocha

Isso tudo pra dizer que “o time do povo” – já que é tão difícil e ao mesmo tempo tão importante trabalhar com as identidades clubísticas – se aproxima muito com o propagandismo ideológico recente da “classe c”, e a representa muito bem: conquista e inserção social (respeitando as ordens do jogo econômico); acesso ao deslumbrante mundo do consumo (camisetas de R$ 200, projetos sócios-torcedores, pay-per-view, Estádios agora como espaços de pertencimento e significativa ostentação, aos quais o acesso já representa um corte de classe); envolvimento e participação, ainda que toscos, no jogo/debate político (Lula, Andrés e compartilhamento de um ideal “democrático corintiano”).

III) Por fim, um último aspecto que chama atenção, bastante corrente nas falas dos boleiros e torcedores corinthianos: a menção sempre frequente ao “fazer história”, no e pelo clube. Uma característica interessante, não frequente nas vozes dos jogadores de outros clubes em outras conquistas passadas, e reveladora de uma dimensão de se compreender como agente histórico, como alguém que em ato escreve e produz uma tradição. Uma tradição que sofrerá diversas reapropriações e ressignificações – é evidente – mas que ganha outros contornos pela ação de agentes que até então estiveram à sua margem. “Justo”, “merecido”, pra dizer o que muitos “antis” foram obrigados a assumir após o apito final no Pacaembu.

O racismo, o patrocínio na cueca e a vigilância nos estádios

Os recentes casos de racismo na Eurocopa não são fatos isolados, sobretudo no velho continente. Não é preciso ter uma “memória futebolística” para se lembrar rapidamente de episódios nos quais o preconceito de cor se sobrepôs ao multicolorido universo do futebol. Sem muito esforço, lembremos os episódios com Grafite (com o argentino Desábado e depois no Pacaembu), da torcida fascista da Lazio e seu queridinho Di Canio, e mais recentemente os episódios com Neymar (pelo Brasil, contra a Escócia), de Roberto Carlos (agora na Rússia, mas igualmente perseguido no Real Madrid), do italiano filho de imigrantes ganeses Mário Balotelli (certamente o mais perseguido dos últimos tempos – ele hoje mal comemora os gols), das declarações do uruguaio Luis Suárez e do Zenit FC, de São Petersburgo, que tem a política de só contratar jogadores brancos.

Mas, “Que fazer?”, diria alguém preocupado com a humanidade. Creio que o futebol não pode ser visto descolado do tecido social no qual se encontra. Isso equivale a dizer que assim como é produtor de práticas sociais, também reflete o que ocorre ao se redor. Se hoje o futebol propaga esta triste prática é porque vivemos numa sociedade que reforça determinados padrões estéticos e, sobretudo, não lavou as feridas abertas por séculos de exploração econômica colonial e neocolonial fundamentalmente apoiadas em práticas escravistas e de super-exploração laboral. Mais do que isso, a atual conjuntura mundial, com ondas imigratórias que preenchem as piores ocupações nas escalas de trabalho (sejam bolivianos no Brasil, Indianos ou africanos na Europa, latino-americanos nos EUA) continuam a retroalimentar o perverso mecanismo e, por consequência, não só lamber, mas também abrir novas chagas.


Obviamente é preciso agir, e tencionar as mudanças em várias frentes (não há que se falar em ouvir a opinião pública). No futebol, isso deveria passar por um engajamento pesado da FIFA, UEFA e outras confederações ao redor do mundo. Deveria ocorrer um “Para (pára) tudo”. Imagem o impacto que teríamos se a Eurocopa fosse paralisada, encerrada, em decorrência de manifestações racistas. Semelhantes atitudes deveriam ser tomadas em relação a clubes ou jogadores que reforçassem tal prática (suspensão, rebaixamentos). Uma outra frente de atuação deveria ser a intensificação de campanhas de combate ao racismo, o que poderia envolver personalidades com envolvimento com a questão, pesquisadores e ações educativas que organizassem estrategicamente as ações. Aqui no Brasil a Federação Paulista de Futebol fez campanhas neste sentido, mas de um modo bastante tosco adotou o slogam “Racismo aqui não”. Em outro lugar pode? Em outro lugar tudo bem? Somos melhor que os outros neste quesito? Ou se trata de má-fé ou de um imenso despreparo.

Tal questão apresentou-se não muito sutilmente nesta semana em decorrência de um jogador dinamarquês que foi punido por comemorar um gol e abaixar levemente o calção, expondo um patrocínio no elástico de sua cueca. A UEFA agiu rápido e o multou com valores superiores aos aplicados em alguns casos de racismo. Aí fica a questão: qual é a ordem das prioridades para estes Srs. de cartola? Preservar os interesses do official sponsor ou combater uma prática nefasta como o racismo? Aliás, porque tantos cartolas brancos, e tantos jogadores negros?

Sobre a questão dos patrocínios há uma hegemonia nada questionada em relação aos “donos do circo”. Talvez nem na Fórmula1 tantos patrocínios estejam condensados numa transmissão como no futebol. São as placas ao redor do gramado, nos estádios, CT’s, camisetas, banners colocados atrás de onde ocorrem as entrevistas, sites, propaganda de televisão, microfones, faixinhas de cabelo, munhequeiras, luvas e por aí vai. Nem as mensagens religiosas devem ofuscar os patrocinadores  (Kaka não pode mais louvar após meter gols). Quanto mais as mensagens “políticas”, estas já tão esquecidas, nem nas arquibancadas podem se manifestar tranquilamente, menos ainda dentro do campo de jogo – o que significaria a condenação à perseguição por externar seus pensamentos (nos idos de 1997 Romário foi proibido de mostrar mensagens em camisetas em comemorações de gols). Jogador bom é aquele que comemora fazendo coraçãozinho com as mãos e solta o instigante grito “é campeão” após algum título.

Na verdade, algumas poucas frestas sobraram (ou se abrem) nestes imenso muro construído entre os artistas e os empresários do espetáculo. Um dos poucos espaços para manifestação dos jogadores (não que ainda não esteja inundado pelo marketing) são as chuteiras (e caneleiras), onde ainda pode-se grafar algum recado ou manifestação. Mas duvido muito que se algum jogador ostentasse na chuteira a mensagem “Palestina Livre”, nada lhe ocorreria. Sobram aos jogadores, ainda, seus próprios corpos, que podem ser tatuados ou exporem (por meio da dança, de um gesto) mensagens, mas talvez esse seja assunto para um outro debate, pra uma outra oportunidade.

Com efeito, os temas do racismo e das mensagens vinculadas numa transmissão esportiva (a transmissão se tornou mais importante que o próprio evento) expõe a importância que vigilância das câmeras adquiriu nas arenas esportivas. Vigilância esta que se presta a determinados interesses e ignora outros tantos (como nos casos citados do racismo e das propagandas); delimita os lugares sociais dos jogadores e da torcida (reforça uma personalidade “boa” para os jogadores e dá visibilidade a determinadas práticas torcedoras) e faz funcionar um espetáculo com assentos demarcados, camarotes vips, e produtores que tentam manter, de toda forma, uma determinada ordem sob controle. Até agora estão tendo sucesso.